Estudo mapeou que 27% voltaram a ter comportamentos de quando eram mais novas na faixa etária entre zero e três anos
De repente, o mundo de Benício, de 2 anos e meio, mudou. As visitas à casa de parentes e de outros bebês deram lugar ao único passeio possível: levar a mãe ao supermercado, de carro. O menino parou de falar e voltou a usar mamadeira, enquanto os pais, com medo do vírus e do desemprego, tentavam lidar com o mundo assustador que batia à porta. Como Benício, não foi pequeno o número de crianças que, na pandemia, voltaram a ter comportamentos de quando eram mais novas: chorar mais, falar menos, fazer xixi na roupa.
Regressões no comportamento são sinais de que a criança está sob estresse e é uma forma que elas encontram de pedir aconchego. Estudo da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) indicou que 27% das crianças de 0 a 3 anos voltaram a ter comportamentos de quando eram mais novas na pandemia, segundo a percepção dos pais. A pesquisa, divulgada este mês, indica que regressões geralmente são transitórias, mas devem ser observadas com cuidado pelas famílias.
“Notei que ele deixou de tentar falar. Era um bebê e tentava se comunicar através da fala, mas começou a só apontar”, conta a mãe de Benício, a arte educadora Heloisa Trigo, de 41 anos. Junto com a regressão na fala, o menino também voltou algumas casas na alimentação: se recusou a comer alimentos sólidos e reativou a mamadeira. “Quando tentei fazer voltar a comer, organizar a rotina, era como se eu não o acessasse mais.”
A pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal ouviu 1.036 famílias de todas as classes sociais sobre as repercussões da pandemia na rotina de crianças de 0 a 3 anos. Embora a ciência já saiba que as crianças pequenas são menos atingidas de forma grave pela covid-19, pesquisadores em todo o mundo ainda tentam estimar os impactos emocionais e cognitivos do longo tempo de isolamento decorrente da pandemia e do estresse dentro das famílias.
Falta de contato com outras pessoas, rupturas na rotina, medo e angústia dos pais estão por trás dos comportamentos regressivos nas crianças. “Parte das regressões está relacionada a não conseguir manter o ambiente dentro de casa em função de variáveis externas que transbordam”, explica Mariana Luz, CEO da FMCSV. Em meio a uma situação sem precedentes, todas as famílias enfrentaram dificuldades, mas, segundo o estudo, pais da classe D se veem mais sobrecarregados e tristes.
“Foram muitos lutos, a ameaça do desemprego, de não conseguir prover o sustento. Depois a falta de esperança, sem ver uma luz no fim do túnel”, lembra Heloisa. O marido perdeu parentes e o emprego. Trabalhando de casa, Heloisa se sobrecarregou com rituais de limpeza que não acabavam mais para tentar se defender do vírus. “Benício também sinalizou que estava difícil para ele.” De volta à escola, o espaço ekoa, na zona oeste de São Paulo, o menino voltou a comer, começa a se arriscar mais na fala e a mãe vê avanços.
Na casa de Tatiane Zanholo, de 36 anos, o vírus assustou o casal de dentistas, que teve medo de voltar ao consultório. Com duas crianças pequenas e sem ajuda de parentes ou babá, as tarefas se avolumavam. Murilo, hoje com 4 anos, respondeu com uma gagueira que nunca havia manifestado, piora na dermatite e um “choro interminável”, nas palavras da mãe. “No começo não sentia tanto, mas fomos ficando cansados. De repente, ele não dormia, acordava várias vezes, chorava demais e começou a ficar birrento.”
Embora aflijam os pais, as regressões não devem ser vistas com desespero nem são sinais de que a criança terá defasagens no desenvolvimento. Muito mais do que adultos, crianças novas têm maior plasticidade cerebral – ou seja, se recuperam rapidamente quando são estimuladas e se sentem seguras. As mães dos “bebês da pandemia” comprovam que as mudanças não demoram.
“Em uma semana virou outra criança”, diz a dentista Vanessa Junqueira, de 41 anos, sobre a ida do filho Rhian, de 1 ano e 4 meses, à escola após o isolamento. O menino passou os 11 primeiros meses de vida sem contato externo. Qualquer um que não fosse mãe ou pai parecia um monstro para ele e Rhian não parava de chorar. “Só queria ficar comigo o tempo todo, muito apegado. Agora, está bem mais sociável.” De volta ao Colégio Rio Branco, em Cotia, Murilo também melhorou o choro e o sono.
E, quando se fala em brincadeiras, é preciso superar a ideia de que apenas brinquedos de loja cumprem o papel. Usar sucatas, fazer sombras na parede, aproveitar a hora do banho para interagir com a criança são atividades valiosas. “O que a gente precisa é de disponibilidade de interações e brincadeiras para que o desenvolvimento seja atingido”, diz Mariana. Na contramão, a exposição passiva das crianças às telas, que teve um boom na pandemia, prejudica o desenvolvimento.
Segundo a mesma pesquisa, mais famílias hoje relatam que crianças de 0 a 3 anos usam equipamentos todos os dias, na comparação com o ano de 2019. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que crianças de até 2 anos não tenham exposição às telas e aquelas de 2 a 5 anos limitem o uso a uma hora por dia. Pais dizem que o tempo no celular ou na TV estourou – e muito – o recomendado.
“A única coisa que ainda consigo controlar é celular e tablet. Não dou de jeito nenhum. A tela de TV eu tento tirar, mas a gente fica esgotada emocionalmente”, diz Marina Lacombe, de 39 anos, mãe de Laura, de 1 ano e 8 meses. Retomar padrões de tela pré-pandemia vai exigir, segundo especialistas, que as crianças recebam novos estímulos, mais atraentes do que os eletrônicos. No caso de Laura, os animais de verdade da Escola Equilíbrio, na zona sul, e principalmente a “cocó”, ganham de dez a zero de qualquer galinha pintadinha. “Ela está fascinada. Quer brincar, ficar junto, curte com amigos e professores.
Fonte: terra.com.br